quarta-feira, 24 de abril de 2013

Havia algo na trilha da mata



Escrevi este conto há uns 9 anos, inspirado pelas leituras de Stephen King, Edgar Alan Poe e H. P. Lovecraft.

Essa história aconteceu em 1972 em algum lugar afastado dos centros de concentração humana.
Maria Lúcia morava no interior. Casou-se cedo como era costumeiro em sua região e provavelmente tenha alcançado aí o maior de seus sonhos, uma de suas simples ambições, enlaçar-se matrimonialmente para garantir o seu futuro. Esse era o objetivo limite de vida para muitas moças pobres do campo naquela época, um bom homem, uma família, a benção de Deus e um pedaço de terra que garantisse o sustento.  
As linhas que irão decorrer contarão um episódio excepcional e traumático que abalou o singelo mundo de Maria Lúcia.
Com apenas com dezessete anos estava grávida de seis meses, esperando seu primeiro filho, ainda não tinha escolhido o nome do bebê. Mulher ainda de jeito infantil, ingênua, mal sabia escrever por causa da baixa qualidade da pequena escola que freqüentou (que só tinha até a quarta série), do grau de instrução precário de sua família e do universo em que foi criada. Nasceu e cresceu no meio rural, foi poucas vezes a cidade e aparentemente estava satisfeita com sua condição. Parecia não querer mudar, aprendeu a apreciar a simplicidade, tinha algumas fantasias, mas não desejava conhecer coisas novas, criando expectativas infundadas e estranhas. Estava acomodada e visivelmente inserida num patamar aceitável de felicidade.
Seus familiares mais próximos já haviam falecido, tinha apenas uma prima, sua melhor, talvez única amiga de verdade, que morava nas redondezas.
As noticias do mundo acompanha unicamente através de um velho rádio que funcionava com oito pilhas grandes e no passado pertenceu a sua mãe. Escutava músicas antigas, rádio novelas em estações AM das cidades próximas, informações cotidianas apresentadas por locutores de vozes graves, firmes e aveludadas. Às vezes, durante a noite, gostava de procurar emissoras castelhanas, sentava-se sozinha junto ao aparelho na mesa da cozinha, com uma boa xícara de café passado e sentia-se como se viajasse até outros países ao escutar transmissões estrangeiras. Ficava criando fantasias, imaginando como seriam estas terras tão longínquas e tão próximas nas ondas do rádio ao mesmo tempo. Também adorava tango, mesmo sem saber que este era o nome daquele ritmo que a fascinava, que lhe despertava boas emoções quando ressoava nas rádios latinas.

La Cumparsa
de miserias sin fin
desfila,
en torno de aquel ser
enfermo,
que pronto ha de morir
de pena.*

Marcos Antônio, seu marido, tinha trinta e dois anos. Era um homem sério, de poucas palavras, mas um bom sujeito. Gostava da Maria Lúcia, era honesto, fiel e trabalhador. Ao seu modo tentava ser o melhor possível. Não fumava, não jogava e não tinha o maldito habito de beber compulsivamente, pelo menos durante a semana, reservava somente o sábado e algumas raras ocasiões especiais para encher a consciência de cachaça ou vinho. E quando bêbado, não enchia o saco, não interpretava o embriagado chato e irritante como vários tipos fáceis de se identificar nas redondezas, ficava alegre, levemente idiota e dormia cedo. Era o proprietário de uma pequena fazenda a uns trinta quilômetros da cidade mais próxima. Lá havia um pouco de tudo... Gado, vacas de leite, bezerros na engorda para o abate, porcos, galinhas, a horta atrás da casa e uma lavoura, que na época estava coberta por um mandiocal, quase em tempos de colheita. Também tinha uma sanga, com judias, lambaris, traíras, um açude para a sede da bicharada, algumas áreas de mata e um pequeno pomar ao lado da encerra dos animais.
Na casa, além do casal, moravam também a mãe de Marcos Antônio, Dona Joaquina, o irmão mais velho, o Miguel, que era viúvo e tinha uma filha, sua pequena Elaine, com doze anos de idade. Todos ajudavam nos trabalhos da propriedade e tiravam seu sustento daquele singelo, mas bem aproveitado pedaço de chão.
Uma vida simples, humilde, mas honrada e dentro das medidas do possível feliz, mesmo que nem eles percebessem isso o tempo inteiro. Sem muito luxo e conforto, mas convivendo com pessoas boas, religiosas e respeitadoras de suas tradições que eram passadas de geração em geração, principalmente através de histórias. As melhores eram contadas nas noites de inverno, com todos encolhidos sob a luz de velas, em volta do velho fogão a lenha. 
O conhecimento era transmitido assim, pessoalmente, geralmente os mais velhos contando causos para os mais novos e assim por diante. Desta forma se aprendiam receitas regionais, cuidados com as plantas e com os animais, coisas da vida, histórias da bíblia, pois não haviam igrejas por perto. O padre só visitava o lugar umas duas vezes por ano e realizava missas em capelas improvisadas nos galpões.
Uma porção de contos e lendas povoavam o imaginário daquela gente. Alguns inspiradores de sonhos, como o das panelas cheias de ouro que apareciam para determinadas pessoas na beira do rio, em noites sem estrelas e outros aterrorizantes e perturbadores, principalmente para as crianças, como os assombros do velho cemitério ou o lobisomem que aparecia de tempos em tempos, nas noites de quinta para sexta-feira, juntamente com a lua cheia, principalmente rondando casas com recém nascidos que ainda não haviam sido batizados.
Eram bons tempos aqueles.
Naquela época, naquele lugar, se crescia escutando tais fábulas que ajudavam a dar um sentido a realidade. E havia uma lenda em especial, pois tratava de um lugar conhecido por todos, a trilha da mata. Era um atalho convergente entre várias partes da região, ou você passava por ali ou dava uma grande volta, saindo na estrada principal e tendo de fazer cerca de uns três quilômetros a mais.
Os moradores da região sempre usavam aquele caminho sem maiores receios, mas não esqueciam, em sua particular mitologia, de alertar os desavisados que o perigo rondava sim algumas noites daquele mato maldito.
Essas noites podiam ser identificadas por um nevoeiro baixo que ficava mais ou menos na altura da cintura, mais concentrado nas faixas de mato que cercavam a estrada do que na própria trilha, no caminho somente alguns pedaços desprendidos de nuvens ficavam cruzando de um lado para o outro da estrada, preguiçosamente, como se formassem obstáculos em meio ao percurso. Os mais supersticiosos diziam: “se a tria da mata tivé inuviada, dê a volta que é mió, não si méti lá que tu vai se estrupiá, não provoca o que tu não conheci que é mió”. Os mais céticos defendiam sua posição, diziam que aquilo era bobagem, que essas coisas de sobrenatural não existiam: “quero vê o homi que me prove que viu um assombro, é mentira, os homi se cagão tudo e começa a vê o que num existe. Oceis tem é que tê medo de quem tá vivo e não de quem ta morto ou nem ixiste”.
A “tria da mata”, como eles diziam, não era muito longa, se estendia por cerca de quatrocentos metros cortando um pequeno bosque. A floresta era fechada, cheia de unhas de gato, musgos, liquens, teias de aranha e barbas de pau cobrindo as pedras e as árvores, que ficavam muito próximas às extremidades da estrada.
O caminho era sinistro, causava calafrios quando você entrava ali, podia-se sentir o clima mais frio, o ar mais úmido, um leve cheiro de madeira e plantas podres e se você olhasse para cima, veria que as copas das árvores quase se tocavam. A estrada através do capão formava uma espécie de túnel, um arrepiante túnel por uma força que vivia ali, pelas energias dos medos nos pensamentos das pessoas que alimentavam aquele lugar ou por pura coincidência.
Até quem não admitia ser possível existir qualquer coisa lá sabia que o lugar causava um arrepio na espinha, uma quebra no bom humor, como se fosse carregado. Alegavam que era apenas um mato feio, escuro e abandonado.
A verdade era uma só, mesmo quem não acreditava e dizia não ter medo nenhum da trilha da mata, sendo dia ou noite, não importava, ao chegar numa de suas entradas tinha sua tranqüilidade abalada em maior ou menor escala, principalmente quando se fazia a dita travessia sozinho. O sujeito começava a respirar diferente, ficava em estado de alerta, olhando para os lados e para trás sem parar, acelerava o passo. Às vezes disparava numa desvairada corrida inconsciente no meio do percurso, como se algo muito ruim o perseguisse. Ao sair do outro lado sentia um tremendo alívio, com o calor do sol batendo no rosto novamente e respirando muito melhor, como se o ar lá fora fosse mais puro.
A travessia era uma espécie de experiência claustrofóbica.
Então olhava-se para trás e via-se apenas um caminho cortando um pequeno bosque, você pensava que tudo era apenas uma peça de sua imaginação, pensava “como sou um idiota, não tem nada ali, essas histórias que contam servem só para deixar a gente caduco”. Mas passava por ali outra vez e sentia tudo de novo.
Geralmente, por vergonha ou por achar que era bobagem, ninguém comentava aqueles pequenos fenômenos que se repetiam constantemente na trilha da mata e a sua fama de tempos em tempos caía no esquecimento, até que algo novo e surpreendente acontecia e as velhas feridas eram abertas, as lendas começavam a renascer.
As crianças eram as que mais sofriam, haviam vários relatos de meninos e meninas que sonhavam com diferentes manifestações do mal que estavam presentes ali.
Os filhos do seu Ademar contaram uma vez que alguma coisa os acompanhava, fora de seu campo de visão, por dentro da mata e assustava-os com pancadas nas árvores, como se batesse violentamente com um machado nos troncos, só que a mata era muito fechada, não tinha como alguém caminhar livremente sem abrir caminho com muito esforço e um facão afiado em meio à vegetação fechada e as irregularidades do terreno. Eles correram e as batidas aumentaram e também os acompanhavam, cada vez com sons mais altos e mais próximos.
Os meninos ficaram em pânico, não queriam mais passar por ali e a grande surpresa é que quando o pai deles e alguns amigos foram conferir, no mesmo dia, se realmente havia algo lá, impressionados pelo estado das crianças, constataram que árvores estavam caídas na estrada, arrancadas com raiz e tudo, e foi então que as batidas recomeçaram e dessa vez foram os adultos que fugiram assustados.
A dona Noemi, senhora de idade, nem chegou a comentar com ninguém o motivo. Uma manhã, depois de voltar da roça, tendo passado por aquele lugar, pendurou uma corda no teto da estrebaria e se enforcou. O povo, principalmente os mais impressionáveis, afirmavam que a culpada era da trilha da mata, mas nem uma viva alma poderia garantir as razões do suicídio da velha mulher. Apenas ela poderia revelar a verdade.
Também teve o caso do Seu Bastião, que certa vez vinha a cavalo do sitio de um compadre, percebeu que o animal relutava em cruzar o bosque, dizem que esses animais são extremamente sensitivos, insistiu com sua montaria e entraram no túnel verde escuro. Bastião escutou passos que o acompanhavam por entre as árvores, perguntou quem era, ninguém respondeu, ele não deu importância e continuou a travessia. Tornando a ouvir, segundo ele, que sons muito nítidos de pés pesados, pisando em galhos e folhas secas, continuavam próximos a segui-lo e árvores balançando como se alguma coisa grande e forte forçasse a passagem, tornou a perguntar se havia alguém ali e foi então aconteceu.
O velho senhor era conhecido por sua inabalada moral, homem justo, sério, temente a Deus e que não admitia mentiras. Ele tinha palavra de credibilidade para aquele povo e contou que nesse momento começou a ventar mais forte, folhas caíam sem parar das árvores e que alguma criatura começou a gargalhar alucinadamente de um ponto no meio da floresta. Bastião aproximou-se sem descer de seu cavalo, mesmo assustado, das árvores na beira da estrada e viu encoberto pelas folhas, a uns sete metros de distância num canto escuro, dois grandes e assustadores olhos vermelhos a lhe encarar.  Ele sacou sua arma e começou a atirar contra a mata, contra aquilo, descarregou seu velho revolver.
Os olhos sumiram, só que as risadas, que não pareciam humanas segundo Bastião, eram psicopaticamente doentias, aumentaram, agora vinham de todas as direções, haviam se multiplicado. Eram agudas, ensurdecedoras e amedrontariam e confundiriam qualquer pessoa. Seu cavalo guinou e o derrubou no chão, fugindo em disparada. Bastião também não quis dar mais chances ao azar, nem mesmo sacudiu a poeira do tombo, apenas correu o mais rápido que pode atrás de sua montaria, em direção a saída daquele lugar.
Acordou no hospital da cidade treze horas depois totalmente zonzo, ainda sem saber o que aconteceu. Amigos contaram que o encontraram caído na boca da trilha da mata, alguma pessoa havia acertado uma pedrada em sua cabeça. Para o espanto de todos, a pedra estava a seu lado quando o acharam, era um pedaço comum de rocha de rio, só que perfeitamente arredondada, como se aquele objeto houvesse sido trabalhado com maestria por um profissional do ofício.
Depois do ocorrido, o próprio Bastião jogou a pedra no poço da curva, a parte mais funda do rio que cruzava sua fazenda. Uma velha senhora que dividiu o quarto com ele no hospital, muito gentil e que parecia carregar um fardo de conhecimentos sobre assuntos inexplicáveis como este, foi quem sugeriu ao homem para jogar a bola de rocha no rio, pois a água corrente exerce poder sobre o que é amaldiçoado. Lava, descarrega, enfraquece, leva o mal embora.
Depois, por um bom tempo, nada mais aconteceu na trilha da mata. Lentamente as pessoas foram se esquecendo e os receios diminuindo, até que poucos acreditavam.
Muitas outras histórias existem sobre aquele caminho. Dizem que tem uma vela que aparece flutuando em suas entradas em noites de lua cheia, que às vezes há fogo nas pontas das árvores mais altas, que se pode escutar choro de recém nascidos, uivos de animais, risadas e gritos desesperados em determinadas horas da noite, quando há nevoeiro entre as árvores.
Mas não são todos que vêem e escutam as “estranhosidades” daquele lugar, só alguns e em determinadas horas, com nenhuma ou poucas testemunhas e ninguém nunca consegue provar nada, não ficam evidências claras. Tudo ficava no “o Fulano disse, o Sicrano viu”, então você ia até lá e não constatava nada, portanto valia o acredite se quiser. Por isso uns temiam aquele lugar e outros não.  
A fé cristã e um certo senso racional na casa do seu Marcos Antônio não permitiam que se acreditasse nessas supostas fábulas, lá reinava o velho ditado “tem que ver pra crer”. Maria Lúcia e dona Joaquina concordavam e pregavam que Deus, Jesus e a virgem Maria não permitiriam que o mal ficasse tão explícito e materializado, a solta no mundo e ameaçando os cristãos fiéis e puros de coração. A vontade divina não compactaria com essa coisa ruim. E se isso fosse obra da besta, também duvidavam da existência do patrono das profundezas, mas em todo o caso, esse suposto senhor das trevas não teria forças suficientes para combater a luz do bem. E apenas fazendo uma muito improvável suposição, de acordo com as crenças daquela família rural, se tal manifestação diabólica realmente existisse, apenas se manifestaria para infernizar os pecadores, seria um veículo de punição para aqueles que não seguem a palavra do Senhor.  Por isso não temiam, eles procuravam medir muito bem suas ações e seus pensamentos, adequá-los aos mandamentos da bíblia, pois acreditavam sim que forças poderosas e supremas enxergavam tudo. Poderiam estar de prontidão para realizar um julgamento moral e ético no dia do juízo final ou a qualquer momento, abalando assim a pecadora existência dos homens e mulheres de pouca fé.
Dona Joaquina padeceu sob uma forte pneumonia e teve de ser internada no hospital da cidade, uns dias antes em que aconteceu a histórias que irá decorrer.
Já faziam seis dias que ela estava baixada, a sogra de Maria Lúcia já estava bem, apenas se recuperando mais um pouco antes de receber alta e voltar pra casa. Miguel e sua filha estavam lá com ela, se revezavam no quarto e posavam na casa de parentes. O casal estava sozinho em casa cuidando dos afazeres da chácara.
Um primo que há muito tempo foi morar na capital e estava bem de vida, comprou um carro novo e ofereceu de presente o seu velho fusca para o Marcos Antônio. De madrugada, ele pegou uma carona com o vizinho, o João Menino e foi até a cidade, deu uma rápida olhada em sua mãe, constatou que a situação estava sob controle, pegou um ônibus e foi buscar, alegre e todo ansioso, o seu primeiro carro próprio, já fazia um bom tempo que andava dirigindo apenas o trator do velho Bastião quando era preciso. Calculou e comunicou a sua esposa que chegaria naquela mesma noite lá por volta das dez horas. Maria Lúcia ficaria sozinha neste dia.
Naquela manhã de sábado o menino Samuel foi até a chácara da futura mamãe e avisou que a tarde aconteceria o aniversário de Joana, prima e melhor amiga de Maria Lúcia, era para ela ir lá comer um pedaço de bolo. A prima morava num sítio vizinho ao dela, não era longe, cerca de um quilômetro e meio, para quem é acostumado na roça, caminhar uma distancia destas não é nada, dava para ir a pé tranqüilo, era só pegar o atalho pela trilha da mata ou fazer alguns quilômetros a mais indo pela estrada principal. A moça cética quanto os mistérios do lugar nem pensou duas vezes, alias ela nem se lembrou das histórias e tomou o caminho da casa da aniversariante, que ficaria muito magoada no caso de sua ausência.
Maria Lúcia optou por caminhar, ficou com receio de montar a cavalo estando grávida, não queria correr o risco de um tombo e por em perigo a vida de seu filho. Ajeitou bem a casa, calçou um sapato confortável, pegou uma sombrinha para proteger-se do sol forte e saiu por volta das duas e meia da tarde. Foi uma jornada tranqüila, sem nenhum susto na trilha da mata, até a boa tarde de conversa entre algumas mulheres da região, regada a chá de frutas, rosquinhas de cachaça cobertas com açúcar e bolo de cenoura com chocolate, enquanto os maridos tomavam cachaça, cerveja e comiam torresmo jogando bocha na cancha do Tião Caipira do outro lado da estrada e as crianças brincavam nos arredores da casa da prima.
Lá pelas cinco horas da tarde começou a chover. Maria Lúcia grávida não arriscou ir para casa abaixo do mau tempo, aguardou sob o teto da amiga junto com seus dois filhos, Samuel, Tiago e alguns amigos que ficaram ali para brincar mais.
Jantaram e o tempo limpou lá pelas nove horas da noite. Abriu uma linda noite estrelada, com lua minguante. Maria Lúcia se levantou, começou a se despedir, apenas pedindo uma lanterna emprestada para poder enxergar melhor no escuro no seu trajeto de volta. Sua amiga insistiu para que ficasse e passasse a noite ali, mas ela agradeceu e disse que não, seu marido não sabia que ela havia saído e ele não ficaria muito contente de chegar em casa e não encontrar sua mulherzinha, nem mesmo um bilhete explicando a situação. Marcos Antônio era bastante ciumento, então a amiga pediu para ela esperar um pouco, que iria pedir para os meninos a acompanharem até sua moradia, ela disse que não precisava, que era para deixar as crianças brincarem, nada de ruim iria acontecer, ela até brincou que seria capaz de fazer o trajeto de olhos fechados por conhecer muito bem a região.
Para Maria Lúcia não havia perigo nenhum, sempre morou no interior, sem luz, pescando muitas vezes sozinha a noite, nas beiras dos rios. Naquela época não se ouvia falar de assaltos ou violência como nos dias de hoje, tudo era mais sossegado e ela mais acostumada a solidão e a contatos mais íntimos com a natureza.
Joana conseguiu uma lanterna para a amiga que pegou seu rumo. Antes de sair a prima ainda correu, foi até ela e perguntou se ela teria coragem de atravessar a trilha da mata sozinha a noite, ainda mais estando grávida, Maria Lúcia respondeu que fazia tempo que não escutava falar nas histórias daquele lugar, que até já havia se esquecido do que os antigos contavam e que, além do mais, ela nunca acreditou nessas besteiras, coisas do sobrenatural, tinha fé em seu Deus e para ela isso bastava.
A mulher deu inicio a sua solitária trajetória sem receios, não se podia definir aquilo como coragem, porque com apenas dez anos de idade ela já guiava a carroça e levava o leite em recipientes que seu pai tirava das vacas, sozinha muitas vezes, às quatro e trinta da manhã até a estrada principal, para que o motorista do ônibus levasse até a cidade, lá o dono de uma pequena mercearia o recebia e mandava o dinheiro para sua família todo o final de semana. Estar sozinha no escuro não era problema, essas situações não representavam ameaças para o psicológico de Maria Lúcia.
Ela até gostava, sentia uma espécie de liberdade, somente ela, a natureza, o som dos grilos, a campina molhada de orvalho, o ar puro e úmido se misturando com a essência da noite, as estrelas e a aquela linda lua minguante, que parecia um olho irrompendo dos céus, semi-serrado, quase fechado, como se estivesse sonolento. Poderia ser um gigante espacial curvado sobre o planeta, olhando o que acontece nesse globo cheio de vida e morte, naquela mesma posição que a gente fica ao espiar algo pela fechadura, ou então poderia ser um ser supremo e mágico a lhe observar caminhando suavemente pelas terras do Senhor.
E, realmente, até a entrada da trilha da mata ela não encontrou problema algum, somente parou de caminhar e exitou por um breve momento porque percebeu que havia baixado uma neblina nas duas faixas de mata que cercavam o caminho. Era estranho, só naquele pedaço de mato haviam nuvens pousadas. Lembrou de um vizinho de sua infância, senhor de idade, amigo de seu pai, que numa tarde de sol sentado na varanda da antiga casa comentou sobre aquele lugar. O homem não contou nem um fato específico que havia acontecido ali, apenas frisou um conselho. Disse para evitar entrar na “tria” da mata sozinho em qualquer ocasião, principalmente durante a noite quando o mato estivesse “inuviado”. É bem mais seguro fazer o retorno dizia ele.
Por uma fração de segundos suas pernas travaram, poucos metros antes de entrar no túnel de árvores. A imagem do Seu Jeremias, o velho vizinho, lhe veio à cabeça. Maria Lúcia pesou e mediu todos os fatos que lhe eram oferecidos para tomar sua decisão. Eram cerca de três quilômetros a mais fazendo o retorno, seu marido já deveria estar chegando, ela estava cansada, carregar aquela barriga e caminhar por mais tempo não era uma idéia muito agradável. Pensou que perigos poderia realmente encontrar é na estrada principal, lá talvez tivesse a má sorte de cruzar com um transeunte mal intencionado e além do mais, ela não acreditava nessas besteiras de assombração, tinha fé no poder e na proteção da Virgem Maria. Tinha convicção de que até poderia tremer um pouco a perna, mas que nada lhe aconteceria e ao chegar do outro lado daria boas risadas de si mesma pela sua apreensão. E além do mais ela não estava totalmente no escuro, ela tinha sua lanterna, com cerca de trinta centímetros, grossa, o formato lembrava uma corneta, mais saliente na parte que continha a lâmpada, era de plástico verde escuro e nas pontas, com encaixes brancos. Havia ainda uma tira de couro que formava um laço, atada na lanterna, para que esta pudesse ficar com ela presa ao pulso e, também, para pendura-la num prego na parede ao lado da cama da prima Joana.
Então Maria Lúcia adentrou na trilha da mata. Deu alguns passos e sentiu que, estranhamente, o clima estava bem mais frio ali e que o ar também estava mais carregado, com cheiro de coisas velhas, de abandono, como aqueles velhos galpões de madeira que ficam muito tempo fechados e um belo dia você tem que entrar ali para procurar algo em meio a poeira, a umidade, as teias de aranha, a urina e a merda de ratos. Continuou firme na sua caminhada embrenhando-se ainda mais naquele local sem pestanejar. Sentiu sim medo, um pavor crescente que ia aumentando a cada passo que avançava e quando percebeu já havia percorrido uns cem metros do percurso, foi quando percebeu que sua boca estava completamente seca. Tanto medo não estava em seus planos.
Era curioso como a neblina, baixa, na altura da cintura como nas histórias que contavam, ficava concentradas só nas faixas de mato que acompanhavam a estrada, apenas nuvens isoladas ficavam passeando lentamente de um lado para o outro da estrada. Maria Lúcia percebeu que fazia um silêncio muito mais mudo do que o normal naquele lugar. Até os grilos haviam se calado, somente o som do vento passando por entre as árvores e as folhas chacoalhando, fora isso, som nenhum. De repente se deu conta de que em todas as vezes que havia passado por ali, jamais havia escutado o cantar de um pássaro ou visto um bicho qualquer na trilha da mata. Nunca nem um caçador disse que pegou um veado ou um tatu naquele capão. Será que a mata estava morta? Não se lembrava de nenhum registro animal naquele bosque, que não era tão pequeno assim, esse seu pensamento poderia ser uma grande bobagem, mas a assustou mais ainda e ela já começava a achar que ter escolhido o caminho da trilha da mata poderia acabar não sendo uma boa idéia.
E a pobre mulher nem imaginava que o pesadelo estava só começando, tudo iria ficar muito pior.
Já passavam das dez horas da noite. Maria Lúcia sozinha num caminho entre árvores com seu filho que ainda iria nascer e carregando o fardo de um tremendo pavor que não parava de tomar conta de sua razão. Foi quando começou a perceber que havia alguma coisa se aproximando as suas costas, escutou passos que não eram os seus e sentiu o vulto, olhou para trás e viu que a cerração estava mais densa, não conseguiu ver nada, até achou melhor na ter enxergado, ao virar-se novamente para frente na trilha, começou a escutar uma criatura rosnando atrás dela, parecia estar a uns dez metros de distância.
Emitia sons como os de um cão quando está comendo e alguém mexe em sua refeição, rosnava furiosamente, mas não era um rosnar de cachorro, era diferente, ela não conseguia imitar ou explicar como era, nunca tinha escutado nada como aquilo.
A mulher pensou em correr, mas lembrou de um velho ensinamento de seu pai. Quando um cão rosnar para você não corra, ele sente que você está com medo e ataca, fique onde está e vá se afastando calma e naturalmente. Eles sentem o teu medo. Os antigos costumavam, por experiência, saber o que diziam. Preferiu seguir o conselho paterno e continuou caminhando como se nada estivesse acontecendo. A coisa acelerou o passo e não parava de rosnar, alternava sons baixos e altos, lentos e contínuos, parava por alguns segundos e retornava com rosnares insanos, ela sentia a criatura cada vez mais perto, recém estava na metade do caminho para sair daquele bosque. Maria Lúcia tremia inteira e engasgava-se com a secura de sua garganta, apenas levou suas duas mãos até o abdômen, enlaçando-o, ficou numa posição arqueada e encolhida, protegendo mais sua barriga, seu filho e segurando a lanterna para frente, iluminando os lugares onde iria pisar, não queria olhar para trás de jeito nenhum, sentia aquele ser cada vez mais próximo e rosnando sem parar.
Nem gritar adiantava, quem ouviria? E se escutassem provavelmente chegariam ali tarde de mais, para ela só restava continuar e tentar sair daquele amaldiçoado pedaço de chão o mais depressa possível.
Percebeu que a coisa estava muito perto agora, andando na mesma velocidade que ela, estava a acompanhá-la, quase tocando seu corpo, mas a mulher não olhava para trás, não queria ver. Maria Lúcia vestia uma saia até pouco abaixo dos joelhos, sentia a respiração do animal, seu bafo quente na batata de suas pernas, nas coxas e em suas nádegas, foi quando começou a chorar e, sem parar de caminhar, a pedir ajuda aos céus.
Pedia a Jesus e a Virgem Mãe que a protegessem, que a livrassem daquele mal, pedia baixinho, entre soluços, sussurrando, enquanto lágrimas corriam pelo seu rosto. Dizia que era uma boa filha, crente no poder divino e nas palavras do livro sagrado, pedia não só por ela, mas por seu filho, que fora o pecado original, ainda era um ser puro, que não existia e podia nem vir a existir. Pedia perdão por seus inocentes pecados, fazia promessas e implorava para que aquele tormento terminasse logo, ela acreditava não merecer passar por tamanha provação. E a criatura ali a lhe acompanhar. Foi quando ela sentiu algo úmido e frio, poderia ser o focinho da criatura tocando sua perna, ela não agüentou e olhou para trás, encarou a coisa por apenas dois segundos, uma pequena fração de tempo, mas que serviu para elevar ao extremo o seu tormento.
A criatura era negra, pêlos pretos e brilhantes que reluziam até mesmo em meio aquela escuridão, andava apoiada sobre as quatro patas, parecia um cachorro, mas não era. Tinha grandes dentes afiados e tortos, de sua boca saía um bafo quente que evaporava em contraste com o ar frio, não parava de rosnar e os olhos eram terríveis, grandes e nas pontas inclinados para cima, era um olhar do mal, uma coisa ruim, vermelhos e berrantes, tinham cor de sangue. Chamou sua atenção à ausência das pupilas, só uma visão colorada que se destacava em meio à noite escura.
E o pior de tudo foi a impressão que a criatura deixou em Maria Lúcia, parecia estar rindo, se divertindo com seu sofrimento, tinha uma expressão que misturava poder e sarcasmo.
A mulher voltou a sua posição arqueada e continuou a caminhar, chorando ainda mais, olhando unicamente para a frente agora e começou a rezar. “Pai nosso que estai no céu, santificado...” quando sentiu uma dor aguda em sua perna direita, mas não deu atenção, apenas continuou andando, mesmo sentindo o sangue quente descendo por sua perna, sentindo apavorada que a criatura algumas vezes lambia seu ferimento, ela continuou firme, com uma expressão desfigurada de dor e pânico. Estava pálida, tremia, chorava. Estava a um passo da insanidade e só lhe restava rezar. “... seja vosso nome. Venha a nós o nosso reino...”
Maria, envolvendo sua barriga, com amor, desespero e seu instinto de mãe e continuou sua jornada orando. Implorava pelo fim daquele pesadelo, percebeu que ainda escutava os rosnares da criatura, mas que ela já não estava tão próxima, nem sentia mais sua respiração ou suas aproximações, começou a sentir-se melhor, olhou para frente e viu que não faltava muito agora para sair da trilha da mata, um vento de ânimo e alívio soprava em sua alma. Começou então a acelerar o passo, soltou a lanterna, que não estava presa em seu pulso pela tira de couro e quando percebeu estava correndo.
Nem percebeu quando saiu dos limites do túnel de árvores, foi dar-se conta apenas cerca de vinte e cinco metros após uma das entradas da trilha da mata. Parou curvada, com as mãos nos joelhos e começou a respirar ofegante, o ar tinha outro sabor, era puro novamente. Voltou a escutar o som de grilos e insetos da noite e sentiu-se um pouco melhor, a vida estava voltando ao seu curso normal, mas não se conteve e deu uma breve olhada para trás. Viu a luz de sua lanterna irradiando um pouco de claridade em meio a escuridão do lugar, uma pequena nuvem de neblina pairando na entrada da trilha e aquele maléfico par de olhos vermelhos na boca do túnel a lhe observar, pôs-se a correr novamente.
 Chegou em casa as dez e quarenta da noite, acendeu o lampião e uma vela para agradecer nossa senhora, rezou um pouco e ligou o rádio para não se sentir tão sozinha, seu marido ainda não havia chegado. Percebeu que estava ensangüentada, a criatura a arranhou, dando um corte um pouco profundo, na sua perna direita. Verificou que não era nada de tão grave também, limpou o ferimento e estava fazendo um curativo quando Marcos Antônio chegou com seu amigo, o João Menino e encontrou a mulher naquele estado.
Maria Lúcia o viu e começou a chorar, contando entre soluços e prantos o ocorrido. Os dois ficaram sem reação pelo apavoramento da jovem moça, viram que dificilmente ela estaria mentindo e, além do mais, Maria Lúcia não era disso. Marcos xingava a mulher dizendo que ela não tinha nada que ficar andando sozinha no mato a noite “viu no que deu”. João Menino, que era conhecido por ser “pavil curto”, sujeito que gostava de encrenca, de uma boa briga, era justo, mas sempre que possível procurava provar sua valentia para enobrecer ainda mais o seu nome e sua fama nas redondezas, pediu uma garrafa de pinga e começou a beber mais, dizia que tinha de reunir os homens do local e ir lá acabar com o que for que houvesse lá, Marcos Antônio concordou, pegou o carro e foi atrás de mais alguns vizinhos, a mulher só chorava e implorava para que não voltassem naquele amaldiçoado lugar.
Estavam em cinco homens, bem armados com espingardas, revólveres e facões postados numa das entradas na trilha da mata. Maria Lúcia, para não ficar sozinha, estava na casa de sua prima Joana, as mulheres estavam muito assustadas.
Já passava da meia-noite nessa hora, a neblina ainda continuava presente, a paisagem não era nada animadora. Os homens começaram a carregar suas armas e discutir sobre como agiriam para pegar a suposta criatura. João Menino disse que era apenas para Marcos Antônio colocar os faróis de seu fusca iluminando a entrada do bosque e para ficarem de guarda, que ele sozinho entraria ali. Alegava que gente demais ia era atrapalhar, poderiam acertar tiros uns nos outros. Todos estavam com medo, mas não achavam boa idéia ele entrar ali sem ajuda. Mas João não perderia essa chance impar de provar sua valentia, disse para os outros que essa coisa de sobrenatural não existe, que devia ser só um “bicho diferente” que morava no mato. Sabiam que ele era o melhor atirador, que não perdia briga, que já havia batido em homens bem maiores do que ele e que certa vez surrou sozinho três sujeitos que estavam bêbados, fazendo baderna e desrespeitando mulheres casadas num baile da cidade. João não baixava a crista nem para policiais, nem para autoridades. Todos sabiam que foi ele quem deu a idéia e quem empunhou a faca para castrar o domador de cavalos Alaor, depois que descobriram que ele havia estuprado a filha surda muda de um casal de agregados na fazenda do velho Bastião, isso há dois anos atrás. Também, ninguém estava morrendo de vontades de entrar naquele lugar maldito, não eram tão céticos quanto ele, então, mais por medo do que pela razão, acataram sua idéia.
Colocaram o fusca na posição, ficaram enfileirados, dois de cada lado do automóvel, com suas armas, mentes amedrontadas e pernas trêmulas, enquanto João Menino entrou na trilha da mata com ares de bravura.
E lá se foi o homem, entrou uns trinta metros no túnel de árvores, viu, ao seu lado, a lanterna que Maria Lúcia carregava ainda acesa no chão e nada mais. Não escutava barulho algum, segurava uma pistola em cada mão como os heróis de antigos faroestes, sentia-se o próprio Billy the Kid e começou a gritar. “Onde é que tu ta filho da puta! Vem me pega desgraçado”. Os outros, em silêncio, com olhos arregalados, em alerta com suas armas, ficaram sem reação quando um grito horrendo, parecendo vir das profundezas do inferno irrompeu na noite. Marcos Antônio chamou o amigo de volta sem sucesso, João não deu ouvidos e continuou caminhando. Uma nuvem envolvia o corajoso e imprudente João que teve tempo apenas de desprender dois tiros e um grito antes que fosse pego num bote relâmpago.
Do lado de fora do bosque ninguém viu e nem entendeu nada, um deles começou a atirar, Marcos Antônio intercedeu e pediu para que parasse, poderia acertar o João. A nuvem se dissipou e o valente João desapareceu. Somente seus gritos e pedidos incessantes de socorro pairavam no ar, mas ninguém conseguia discernir de onde eles vinham.
João Menino estava sendo massacrado em algum lugar daquele bosque, apavorado pedia ajuda, mas um pouco os gritos estavam perto, um pouco vinham de longe, parecia que ele era arrastado por dentro do mato de um ponto a outro, apanhando sem parar, numa velocidade espantosa, surreal.
Marcos Antônio entrou em seu carro, mandou que os outros o acompanhassem e atravessaram o bosque três vezes sem localizar ou ver exatamente nada. Só gritos desesperados, sons de pancadas, rosnares, batidas nas árvores e pedidos incessantes de socorro. Pararam na entrada da trilha da mata novamente e os berros cessaram, começaram a pensar no que fazer, como agir, discutiam, alguém quis ir embora, os outros não deixaram e depois de quinze minutos de discussão João Menino começou a pedir por socorro novamente. Marcos Antônio mandou que ficassem de guarda ali, pegou seu carro e resolveu ir até a cidade mais próxima chamar a polícia.
Já haviam passado vinte minutos das três horas da manhã quando Marcos Antônio retornou com dois guardas em sua condução e mais três num camburão da polícia. Conseguiu trazer até o capitão da guarda. Havia dito para eles que haviam rendido uma quadrilha de ladrões de gado e precisavam de reforços urgentes para entregar os bandidos nas mãos da justiça.
Ao chegarem na trilha da mata, constataram que um circo estava armado. Havia mais uns sete homens do local ali, devidamente armados também. A esposa de João Menino, suas filhas e mais um grupo de senhoras, estavam paradas perto do túnel com bíblias, com velas acesas e crucifixos, fazendo uma oração. Um cachorro uivava sem parar de uma maneira irritante em algum ponto no campo perto dali, cães das redondezas respondiam. Todos, de uma forma muito confusa e todos ao mesmo tempo, tentavam explicar as autoridades as lendas da trilha da mata e o que estava realmente acontecendo ali, naquele momento.
Era difícil de acreditar. Contaram que já fazia uns quarenta minutos que ninguém escutava nada, nem um sussurro do João.
Os policiais, com suas lanternas mais potentes foram até a entrada da trilha da mata, descrentes ainda, mas constataram que os gritos haviam recomeçado ao longe, baixinhos e em poucos segundos pareciam estar próximos e altos, logo se afastavam novamente, só não perdiam o seu teor de desespero de uma alma atormentada. Risadas macabras também podiam ser percebidas, mas com menor freqüência.
Os berros de João já não tinham a força de outrora, ele estava morrendo. Mais um daqueles terríveis gritos, seguido por uma sinistra seqüência curta e sarcástica de gargalhadas também foi escutada. O pânico se instaurou, principalmente nas mulheres que já não sabiam mais se rezavam ou se gritavam. João Menino pedia ajuda e chorava quase sem voz neste momento, implorando clemência aos homens e aos céus, como se estivesse sendo vitima de uma sessão de tortura das mais cruéis. Os policiais recrutaram os moradores armados, colocaram um responsável dirigindo cada condução e os demais a pé. Ficaram acompanhando em filas, do lado de fora dos veículos, e penetraram no bosque.
Ninguém conseguia ficar alheio aos terrores daquela situação, todos queriam fugir para o mais longe possível, mas não podiam abandonar um ser humano naquelas circunstâncias.
Atravessaram a trilha da mata, indo e vindo, várias vezes durante a noite. Deu até para perder a conta. Nada de encontrar João Menino. Seus gritos cessavam em alguns momentos e depois recomeçavam, sem que jamais se conseguisse descobrir a origem da punição e da maldade. Era como se ele desmaiasse de tanto sofrimento e ao acordar fosse arrebatado pelo anjo da dor novamente.
Alguém resolveu buscar o padre na cidade.
Todos fizeram uma grande roda de mãos dadas e começaram a pedir ajuda a Deus com toda a fé que conseguiram reunir. Rezavam sem parar, sentindo um quase que insuportável aperto no coração a cada vez que a penosa sessão de sofrimento do João recomeçava.
Às seis horas da manhã começou a clarear o dia, um outro vizinho que também tinha carro chegava com o padre da cidade. O representante celestial demonstrava-se irritado por ter sido arrancado de casa no meio da noite por um bando de caipiras, e não fez exatamente nada além de reclamar.
Na trilha da mata o silêncio reinava absoluto neste momento.
Bastaram os primeiros raios de sol surgirem que a neblina no bosque começou a se dissipar rapidamente. Uma das mulheres começou a gritar e apontar para o corpo de João Menino que apareceu a uns setenta metros da entrada da mata. Pressentindo que o perigo havia passado todos correram até lá. O padre ainda não havia entendido o que estava acontecendo e sentia-se como se tivesse sido jogado no meio de um hospício.
O homem estava nu caído na beira da estrada, estava todo ensangüentado, simplesmente não havia um lugar em seu corpo onde não houvessem cortes e arranhões, parecia que milhares de gatos e animais selvagens viraram a madrugada se divertindo insanamente com ele, faltava um pedaço de carne, do tamanho de uma bola de tênis na coxa direita também. João Menino ainda estava vivo, desmaiado, mal respirando. Foi levado rapidamente pela policia ao hospital da cidade.
O estado em que estava o coitado do João era lastimável, todos estavam impressionados pela carga de sofrimento que ele teve de passar. Todas suas unhas haviam sido arrancadas, tinha perdido quatro dentes, estava com duas costelas, uma perna e o dedo indicador da mão direita quebrados, além de perder um testículo e tuchos de cabelo com pedaços de pele da cabeça. Sem contar as muitas farpas, espinhos e fragmentos de pedras que foram retirados dos seus ferimentos.
Sorte que a policia, inclusive o capitão, estavam lá e presenciaram o fato, caso contrário, o que os moradores da cidade iriam alegar que aconteceu com o pobre homem. No laudo saiu que João Menino foi encontrado daquele jeito e os moradores acionaram as autoridades. O que mais poderia ser dito, ocultar a verdade pareceu melhor do que adulterá-la. Quem acreditaria na realidade?
O padre procurou não se envolver, confirmou a versão extra oficial e desconversava cada vez que era questionado sobre o assunto.
Poucos se atreviam ainda a atravessar a trilha da mata.
Algum tempo depois começou o processo de incêndio e extermínio daquele bosque. Aproveitando o tempo mais seco da estação seguinte, os homens se reuniram com todo o combustível que puderam arrumar, receberam a ajuda também dos policiais que estiveram lá aquela noite e literalmente botaram fogo no mato.
Levou uns três dias para que o processo fosse concluído.
Nunca mais se ouviu falar de mistério nenhum naquele local. Teve só o caso do Zacarias, que contava que logo após os incêndios, tinham encontrado ossadas e antigas peças de barro sob o terreno da mata, e que provavelmente, ali foi no passado um cemitério indígena. Mas nunca ninguém mais confirmou essa história e o Zacarias era conhecido pela sua fama de mentiroso.
O João menino acordou quatro dias depois do ocorrido no hospital, ficou lá por cerca de mais um mês e meio até se recuperar. Claro, ele nunca mais voltou ao seu normal, carregou pelo resto de sua vida cicatrizes e marcas profundas. Por sorte ele não se lembra de nada do que aconteceu naquela noite, recorda-se apenas até o momento em que chegou da viagem da capital na casa do Marcos Antônio. Mas mesmo assim não quis mais saber da vida rural, vendeu suas terras e veio para a cidade onde colocou uma pequena venda.
Dizem que anda mais aquietado, tem ido mais na igreja e já não é tão valente como no passado.
 O filho de Maria Lúcia nasceu sem problemas. Recebeu o mesmo nome de seu pai, Marcos Antônio.
Em sua casa todos combinaram de nunca mais tocar no assunto e aparentemente o fato foi esquecido. A própria Maria Lúcia se convenceu de que o episódio nunca aconteceu. Não reclama e não comenta nada com ninguém, mas, às vezes, ela acorda assustada e suada no meio da madrugada, sofre solitária com terríveis pesadelos. Então levanta, vai até a cozinha, prepara uma boa xícara de café com uma dose de pinga e começa a procurar músicas antigas que acalentem o seu pranto no velho rádio a pilhas que pertenceu a sua mãe. Tangos sempre caem bem nestas horas e ela continua sem saber que este é o nome do ritmo que tanto a fascina.

Por eso es que en su lecho

solloza acongojado,

recordando el pasado

que lo hace padecer.*



* contém  fragmentos do Tango La Cumparsita de Gerardo Matos Rodríguez.

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