domingo, 29 de janeiro de 2012

Benzido






Conto de ficção escrito há uns 5 anos e ainda não divulgado. Dos tempos de intensas leituras de Stephen king.


Benzido


A purulenta ferida em minha perna pulsava quente.

Eu era muito jovem, uma criança ainda, tinha 11 anos, a flor da idade, num tempo em que a infância era mais lenta, mansa e longa do que neste nosso frenético agora.

Na época, não entendia direito o que estava acontecendo, parece que tudo era um sonho meio confuso, apenas sentia falta de não poder brincar normalmente com as outras crianças, enquanto papai e mamãe estavam em prantos com aquela ferida podre que insistia em não curar.

Cerca de um mês e meio atrás, tinha ido com meus pais visitar uns parentes, uma prima de minha mãe que morava num sítio, há uns 30 quilômetros da cidade. No campo era só alegria, comer ameixas e goiabas, ver porcos, gados e cavalos, brincar com cães e gatos, tomar banho de sanga, pescar, ser picado por variados e incontáveis insetos e sentir diferentes cheiros de mato.

Durante à tarde, estava brincando com o meu mais novo melhor amigo, menino da roça, filho da prima de minha mãe. Subimos numa árvore, com ele sempre me ensinando algumas preciosas lições da vida rural. Foi quando avistei seu pai correndo assustado em nossa direção e gritando: - Desçam, daí! Desçam daí ligeiro que é um pé de bugre!

Bugre ou Aroreira, para quem não sabe, é uma árvore comum no sul do páis, que pode causar reações alérgicas a algumas pessoas. Bom, o meu mais novo melhor amigo não detinha tantos conhecimentos rurais quanto eu imaginava.

Fiquei alarmado com aquela gritaria que se somou ao meu senso do desconhecido e desci o mais rápido que pude da árvore, digamos que desesperadamente. Acabei acidentalmente batendo com a parte interna de minha perna esquerda, aquela parte mais macia ao lado da canela, num galho quebrado que rasgou e penetrou a carne. Como uma criança eu chorei e fui socorrido.

A ferida não aparentava ser grave, mas o tempo passou e ela não curava. Primeiro pronto socorro, depois médicos, um mês depois uma pequena cirurgia de limpeza onde um dreno foi colocado em minha perna. A infecção insistia em não cessar. É engraçado como até hoje eu lembro do cheiro nojento daquele pus amarelo, com filetes de sangue, que vertia de minha perna quando era pressionada.

Numa bela tarde de sábado, minha mãe muito preocupada e sem saber o que fazer, resolveu tentar uma solução mais mística, mirabolante, idéia da dona Maria, uma vizinha que relatou as proezas do seu Antenorzinho.

Ele era um benzedor famoso nas redondezas. Suas façanhas percorriam o imaginário popular, compondo a mitologia local. E lá fui eu, de mãos dadas com minha mãe e a sua amiga gorda, para uma consulta com o seu Antenorzinho, uma espécie de sacro curandeiro urbano.

Eu estava apreensivo, não sabia o que era “ser benzido”, se doía ou não, naquele momento, em meu imaginário de menino, a dor instantânea era minha única preocupação.

Chegando lá, havia três pessoas para serem “benzidas” na minha frente, uma velha com problemas de coluna, um rapaz que torceu o pé jogando futebol e uma menina que sofria de convulsões. Eu, com minha perna podre, completava aquele magnânimo time de desgraçados.

O seu Antenorzinho chegou, olhou em meus olhos e segurou minha mão, pude sentir sua pele velha e molenga, após alguns intantes, me conduziu para a sala em que atendia os seus doentes. Ele passava segurança, era muito calmo e simpático, de sorriso brando, me colocou sentado numa bancada de madeira azul, daquelas antigas que serviam de baú também, em que geralmente guardavam madeira para alimentar o fogão a lenha. Ele foi até a despensa e voltou com uma faca grande de cozinha e um pedaço de toucinho, parecendo neste momento estar em transe, apenas rezando em sussurros palavras rápidas e indecifráveis. Cortou um pedaço de toucinho e se dirigiu ao fogão, abriu uma de suas gavetas e ficou desenhando cruzes nas cinzas do compartimento, sem interromper a reza, mantendo o ritual por alguns minutos. Depois começou a rezar para mim, colocou a mão em minha cabeça e foi quando percebi que ele dizia “Nossa Senhora”, pelo menos acho que foi isso que ele disse, mas posso ter me enganado também, tudo acontecia de uma maneira totalmente estranha para mim. Então, ele foi até a mesa, pegou o pedaço que havia cortado do toucinho e começou a benzer minha ferida, fazendo sinais da cruz com aquela gordura de porco em volta do machucado por mais um tempo. Confesso que senti o machucado mais quente e coçando nessa hora.

Durante todo o processo eu não senti medo, sentia uma estranha calma, uma espécie de paz com uma leve sonolência, de certa forma, eu confiava nele, confiava naquilo tudo. Seu Antenorzinho deu o toucinho para que eu segurasse e pediu para acompanhá-lo. Fomos para o pátio, nos fundos da casa, e caminhamos até o meio do gramado onde havia um formigueiro, com a faca ele abriu aquela terra, novamente fazendo movimentos em cruz e agitou as formigas, elas eram negras e ficaram inquietas, pediu para que eu jogasse o toucinho ali, eu obedeci, então ele o cobriu de terra novamente, deixando o toucinho enterrado dentro do formigueiro.

Dois dias depois da experiência com o seu Antenorzinho, o pus parou, aos poucos o ferimento começou a cicatrizar, papai, mamãe e o médico ficaram contentes. Mas, a questão ficou pairando no ar, o machucado curou porque a medicina surtiu efeito, o seu Antenorzinho tinha realmente poder ou minha cabeça, impressionada pelo ritual, fez meu corpo reagir?

Foi o seu Antenorzinho, eu tenho certeza. E isto ficou muito claro para mim algum tempo depois, pelos acontecimentos que marcaram o final daquele ano incomum.

A chuva resolveu não aparecer mais, uma forte seca se instalou, atingindo tudo que tinha vida em nossa cidade. Faltava água, os açudes e rios menores secaram, era uma poeira desgraçada pairando no ar e uma crise que deixava agro-pecuaristas e comércio em prantos. O desespero estava instaurado na terra da fartura que agora estava seca.

No dia em que tudo voltou ao normal e a água começou a cair novamente, eu estava passeando de bicicleta com um amigo perto da casa do seu Antenorzinho, pouco antes da chuva, ele caminhava na calçada com o braço enganchado numa jovem e bela mulher, me viu na rua e me chamou, queria ver minha perna, a cicatriz do machucado, gentil como sempre, ele disse que sabia que tudo iria ficar bem, afagou minha cabeça com a mão velha e molenga e disse para não me preocupar, pois logo a chuva chegaria. Eu e meu amigo havíamos notado que a mulher que estava com ele, presumimos que fosse sua filha, estava com os olhos tristes e encharcados. Ela sabia de algo.

Continuamos andando de bicicleta nas proximidades e o tempo começou a escurecer. Eu senti os olhos levemente pesados, aquela mesma estranha calma de quando o seu Antenorzinho benzeu minha ferida e convenci o meu amigo a voltar na casa dele. Chegamos lá, a casa estava toda fechada, entramos num terreno baldio ao lado, que fazia divisa com os fundos da residência do seu Antenorzinho. Ao nos aproximarmos, notamos que havia algumas pessoas no pátio da residência, a chuva começou a cair forte neste momento, fomos caminhando, nos escondendo no capim alto e chegamos até a divisa da cerca, por onde conseguíamos espiar sem sermos vistos.

Sete pessoas estavam lá, uma delas era a mulher que achamos que podia ser sua filha, as outras eu não conhecia e depois daquela chuva nunca mais os vi também. Todos, menos o seu Antenorzinho, estavam em pé no gramado, num semi-circulo, repetindo aquela estranha reza, dessa vez não percebi nenhum “nossa senhora”. O clima era de total tristeza, dava para perceber que eles rezavam e choravam. O mais estranho é que na frente deles havia um gigantesco formigueiro, com mais de dois metros de comprimento e um metro de altura, dava para ver de longe aquela infinidade de formigas pretas se agitando sobre a terra com as gotas de chuva.

O seu Antenorzinho estava ali dentro, eu sei, ele se sacrificou para salvar sua terra e nunca mais foi visto, virou um mistério, como um elefante velho, ele simplesmente desapareceu.

Esta é a lembrança mais forte de minha infância e não posso contá-la a ninguém. Quem acreditaria?


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