Menino de rua, menino de ouro.
De sorriso fácil, dotado de inteligência sagaz e
acolhedora que conquistava a todos com cantorias, histórias, pequenos favores e
parceria por caminhadas pelas ruas do vilarejo. Cabelos negros, caídos sobre os
encantadores olhos azuis, pele alva, suja das ruas, mas que não maculava o seu encanto, o seu doce sorriso... Mas naquele dia seus olhos não projetavam luz e de sua
boca escorria sangue morno após ser atravessado no abdômen pela amolada espada do
soldado real. Quem mandou correr para não apanhar mais uma vez? Quem mandou não
obedecer? Menino de rua, menino de ouro, você foi à gota de água que faltava
para a insurgência popular. Muito trabalho e pouca comida. Muito sofrimento e pouco respeito. Uma população esmagada por impostos e maus tratos de um rei apaixonado pelo poder, inconsciente de suas ações e distante de seu
povo. Todos já ouvimos histórias como esta, acontecem em qualquer tempo, em
qualquer lugar. Mas desta vez a população reagiu. Os guardas que mataram o
menino foram os primeiros a serem linchados. Com a fúria de mil temporais a
população partiu escudos rumo ao castelo, clamando por justiça,
marchando com sede de sangue.
Embora ninguém mais lembre, foi neste dia que tudo
começou.
Os camponeses gritavam e enfrentavam os soldados próximos aos portões do castelo, ameaçando perigosamente a paz real. Foi quando
a janela da torre mais alta abriu e fez-se o silêncio. Todos pararam de brigar
porque sabiam que aquele era o aposento do velho feiticeiro. Haviam lendas sobre
infortúnios que sofriam os seus desafetos. Mas a janela ficou lá, escancarada,
com o escuro de seu interior contrastando com o céu azul.
Um horrendo e desconhecido grito arrepiou a todos. Mais e mais gritos vieram em seqüência. Criaturas aladas começaram a voar pela janela, eram gárgulas, a circular a torre e a explorar os ares do reino com seus altos e
estranhos sons. Não houve homem ou mulher que não temeu por suas vísceras, por
seu fim.
O povo amedrontado fugiu.
A rebelião se dissipou.
Os
soldados também fugiram.
Ninguém sabia o que estava por vir.
Mas as gárgulas
não atacaram ninguém, elas ficaram apenas voando por um tempo e depois se
dirigiram ao vilarejo e ao campo. Pousaram sobre os telhados de todas as casas. Uma
gárgula por casa.
Com sua pele cinzenta e pegajosa, cheiro ruim de
coisas azedas e velhas, e aparência repugnante, mesmo sem atacar, causavam um
sinistro mal estar entre as famílias. Era a visão aterradora do desconhecido, estavam sob controle e podiam ser devorados a qualquer momento.
Cada homem entrou em sua casa e permaneceu em
silêncio com sua família. Não era hora de orgulho, era preciso sobreviver, era
preciso andar na linha com a cabeça baixa e tentar compreender a o que estava acontecendo.
Alguns diziam que o feiticeiro via o que as gárgulas
viam, mas não se sabe se isto é verdade. E, também, neste momento, não importa mais.
As gárgulas saiam dos telhados apenas a noite, por
rápidos momentos, para caçar seu alimento e voltavam aos seus lugares, dos topos das casas. Às
vezes comiam uma cabra, um porco, mas na maioria das vezes caçavam lebres e
animais dos bosques ao redor. Eram exímios caçadores. Saiam, comiam e voltavam.
Com o tempo as pessoas foram se acostumando com suas
novas bestas de estimação. Alguns ficaram com raiva e até tentaram uma reação,
mas não adiantava. As gárgulas eram fortes, pareciam indestrutíveis e não
esboçavam reação alguma quando atacadas com pedras ou paus. Outros tentaram fugir, ir
embora, e estes tiveram pior fim. Naquela noite as gárgulas não comeram carne
de animais.
As criaturas vieram para ficar, nada podia ser feito.
Maldito feiticeiro! As famílias acostumaram-se inclusive com o cheiro dos
detritos das gárgulas que iam se acumulando em seus telhados. O melhor era
ficar quieto, trabalhar, fazer o possível para alimentar sua família, pagar os
tributos e passar despercebido. Salve o rei!
Aos poucos as gárgulas foram adotando novos comportamentos,
começaram, digamos, a ficar mais excêntricas, idiotas... Todos detestaram aquilo,
era degradante para qualquer ser humano. Possuir criaturas debochadas
tripudiando sobre suas cabeças, ignorando as suas dores. As Gárgulas granavam,
riam, peidavam e começaram a cantarolar diversas melodias simples, repetitivas e
bizarras. Era tão estúpido, era vergonhosamente humilhante.
Ninguém se lembra como as coisas mudaram, apenas que
depois de poucos anos tudo ficou diferente. O povo acha que melhorou, mas tudo
piorou. As gárgulas começaram a fazer parte da vida das pessoas e todos foram
esquecendo o que elas representavam e de onde elas vieram. As famílias
começaram a apreciar as graças das criaturas, as suas músicas e a alimentar
seus gárgulas que não precisavam mais sair a noite para caçar. O comportamento
foi mudando, com todos ficando mais leves e alegres. Ficava-se mais dentro de
casa, escutando as gárgulas. Era o prazer das famílias. Você trabalhava e
voltava correndo para o seu gárgula “amigo”.
As pessoas já não comiam juntas à mesa, não
conversavam mais. Cada um servia o seu prato e sentava no seu canto preferido da
casa. Ficavam escutando e repetindo as decadentes canções e flatulências.
Viciados.
Dependentes.
Apáticos.
Nunca mais ninguém perturbou o rei, interferiu nos seus
conselhos, deixou de pagar impostos ou ousou questionar os mandos e desmandos
do velho feiticeiro.
Chegou há um ponto em que ninguém se lembrava quando
a primeira gárgula pousou no primeiro telhado, nem do primeiro grito que irrompeu
da janela do castelo. Aliás, as pessoas nem lembravam que as gárgulas pertenciam ao feiticeiro. Pois agora as gárgulas eram suas.
A história e as identidades
foram sepultadas pelo riso atoa.
Mas para que lembrar de um passado triste se hoje a
felicidade impera?
Muitos verões se passaram... E a história apenas
mudou por interferência da mãe natureza.
Houve uma grande seca e depois um inverno
particularmente rigorosos. O pior de todos. Uma enchente acabou com a
plantação, os animais morreram, muita neve caiu. Foram pegos desprevenidos. Os estoques de grãos do rei haviam sido vendidos para que o
monarca pudesse aumentar uma ala de seu castelo e que ninguém ousasse tocar no
seu ouro. A comida mais simples tornou-se mercadoria de luxo...
Aos poucos o cantos das gárgulas foi mudando, de bobas melodias, começaram a gritar desesperadamente, não
queriam mais caçar e muito pouco havia para caçar. Queriam ser servidas por
seus humanos, queriam comida e não havia.
Fugir era impossível.
Os primeiros a serem devorados foram os homens mais
fortes e os que tentavam fugir. Depois, lentamente, os demais, os velhos e as
mulheres... Aos poucos as casas foram ficando vazias.
O rei e sua família estavam muito longe. Passando
uma temporada em sua estação de férias, longe do frio. E o feiticeiro, isolado
na imponência de sua torre, mesmo com o grande frio que fazia, depois que o sol descansava e a lua
surgia, escancarava a sua janela e esperava. O buraco de sua morada na torre de pedra era como
uma mancha negra contrastando com o céu estrelado.
O feiticeiro recebia uma criança por noite das suas gárgulas.
Agora, os filhos alimentavam o pai.
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