quinta-feira, 6 de junho de 2013

Sem poesia a vida não vale a pena



     Será que pegamos o caminho errado em algum trecho da história?
Ironicamente poderíamos afirmar que a série The Walking Dead é um sucesso porque o apocalipse zumbi já começou e as pessoas ainda não perceberam. Vivemos acordados na ilusão, narcotizados pelo entretenimento, pelo humor, pelo sexo e pelo consumo absurdo. Idolatramos o pior de nossa cultura, os conteúdos mais rasteiros e ignoramos nossa potencialidade intelectual.
     Que morra na míngua, sem visibilidade e sem dinheiro, todo aquele que ousar pensar e criar arte, beleza e formas de desenvolvimento coletivo e igualitário. Vamos exaltar os corruptos, os bonitos e os idiotas. Estamos sob o efeito da anestesiante pílula azul da “Matrix capital”¹. No filme a pílula vermelha permitiria acordar da alienação, da escravidão, e saber “até onde vai à toca do coelho”², mas não queremos provar da dolorosa realidade. A verdade machuca, preocupa, nos obrigaria a lutar por mudanças e não queremos levantar da poltrona. Não entendemos a realidade e nos condicionamos a viver o melhor de uma falsa paz, ou o pior, dos Simulacros e Simulações³ de Jean Baudrillard.
     Quando somos tocados por um sopro de sensibilidade e decidimos abrir os olhos e espiar por uma fresta da cortina do destino, visualizamos que são tempos duros, de inversão de valores e dormimos assustados. Sabemos que a situação atual é cruel e sabemos que ainda pode piorar. Creio que a maioria só perceberá o caos que estamos criando quando a eletricidade cair e a luz da tela do computador e dos televisores parar de bater em seus rostos.
     Trabalhamos tanto que não temos mais tempo para viver. E se não trabalharmos seremos arrasados pelas contas que temos de pagar. Boa parte do pouco tempo que sobra gastamos assistindo televisão, consumindo álcool ou perseguindo a balada perfeita. Consumimos roupas, comida, políticos, cantores, religiões, futebol... Geramos riquezas e poder para mídia e seus financiadores e em troca nos tornamos ocos e viramos massa de manobra.
     Celular, skype, redes sociais... Nos comunicamos tanto que não nos comunicamos mais. Desperdiçamos tempo, desperdiçamos vida. Não agimos coletivamente, não amamos o próximo, preferimos mais conforto e poder de compra do que um mundo equilibrado entre homens e natureza. Somos nocivos ao planeta e nocivos a nós mesmos. Caminhamos juntos com os mesmos passos incertos.
     É a era do “tudo junto e misturado” e ao mesmo tempo a era do nada. Hoje é possível agir com vulgaridade numa festa e publicar fotos sensuais no Facebook com frases como “O Senhor é minha fortaleza” ou “Muita fé e Deus no coração”, bem como assistimos cantores sertanejos/funkeiros que depreciam a mulher, estimulam o alcoolismo, a promiscuidade e agradecem a Deus no intervalo das músicas. “Pode isso Arnaldo?” Particularmente, considero um tremendo desrespeito, um sacrilégio com a essência da fé. Nada precisa fazer sentido. Hoje em dia você só precisa parecer ser do bem.
     A educação nacional é um fiasco, as livrarias fecham ou passam a vender apenas futilidades, os cinemas não passam mais filmes de arte, as rádios, por audiência, só tocam o que há de pior e a televisão é grande máquina destruidora de mentes e sonhos. Algumas religiões radicais e absurdas se cercam de ignorantes e ganham poder, as pessoas estão cada vez mais frias, consumistas, a natureza clama por socorro e a política nacional é uma piada. O cerco está se fechando, o cenário apocalíptico está desenhado e não invente de questionar o sistema ou correrá um sério risco de ser queimado na fogueira.
     Morremos de rir com o gordo rico que emagrece, com o silicone bizarro na bunda da passista, com os barracos dos famosos, com a queda do cantor pseudoartista, com a pegadinha na TV que humilha o excluído senhor da periferia, com a letra esdrúxula do novo funk... Morremos de rir. Desmanchamos culturas, não criamos valores positivos, não investimos no desenvolvimento de nossa civilização, perdemos a capacidade de nos emocionarmos com a arte e de valorizar pessoas que são grandes por suas atitudes.
     Sejamos técnicos: nossa prioridade precisa ser a educação e o senso de coletividade ou nada vai mudar.
     Sejamos humanos: sem amor, sem sonho e sem poesia a vida não vale a pena.

*¹ Matrix – Filme dirigido pelos irmãos Wachowski. Aborda um futuro fictício onde as pessoas são escravizadas sem perceberem, pois suas consciências são mantidas numa realidade artificial.
*² Frase citada no filme Matrix, inspirada no livro Alice no País das Maravilhas. Remete a mergulhar no desconhecido.
*³ Simulacros e Simulações – teoria do filósofo Jean Baudrillard que afirma que não vivemos a realidade e sim uma simulação dela sem percebermos, pois estamos alienados pelo sistema que nos cerca.

Um comentário:

  1. Muito boa reflexão, Marcelo. De uma sensibilidade ímpar e uma sinceridade inquietante.

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