Será
que pegamos o caminho errado em algum trecho da história?
Ironicamente
poderíamos afirmar que a série The Walking Dead é um sucesso porque o
apocalipse zumbi já começou e as pessoas ainda não perceberam. Vivemos acordados
na ilusão, narcotizados pelo entretenimento, pelo humor, pelo sexo e pelo
consumo absurdo. Idolatramos o pior de nossa cultura, os conteúdos mais
rasteiros e ignoramos nossa potencialidade intelectual.
Que
morra na míngua, sem visibilidade e sem dinheiro, todo aquele que ousar pensar
e criar arte, beleza e formas de desenvolvimento coletivo e igualitário. Vamos
exaltar os corruptos, os bonitos e os idiotas. Estamos sob o efeito da anestesiante
pílula azul da “Matrix capital”¹. No filme a pílula vermelha permitiria acordar
da alienação, da escravidão, e saber “até onde vai à toca do coelho”², mas não
queremos provar da dolorosa realidade. A verdade machuca, preocupa, nos
obrigaria a lutar por mudanças e não queremos levantar da poltrona. Não entendemos
a realidade e nos condicionamos a viver o melhor de uma falsa paz, ou o pior, dos
Simulacros e Simulações³ de Jean Baudrillard.
Quando
somos tocados por um sopro de sensibilidade e decidimos abrir os olhos e espiar
por uma fresta da cortina do destino, visualizamos que são tempos duros, de
inversão de valores e dormimos assustados. Sabemos que a situação atual é cruel
e sabemos que ainda pode piorar. Creio que a maioria só perceberá o caos que estamos
criando quando a eletricidade cair e a luz da tela do computador e dos televisores
parar de bater em seus rostos.
Trabalhamos
tanto que não temos mais tempo para viver. E se não trabalharmos seremos
arrasados pelas contas que temos de pagar. Boa parte do pouco tempo que sobra
gastamos assistindo televisão, consumindo álcool ou perseguindo a balada
perfeita. Consumimos roupas, comida, políticos, cantores, religiões, futebol...
Geramos riquezas e poder para mídia e seus financiadores e em troca nos
tornamos ocos e viramos massa de manobra.
Celular,
skype, redes sociais... Nos comunicamos tanto que não nos comunicamos mais.
Desperdiçamos tempo, desperdiçamos vida. Não agimos coletivamente, não amamos o
próximo, preferimos mais conforto e poder de compra do que um mundo equilibrado
entre homens e natureza. Somos nocivos ao planeta e nocivos a nós mesmos. Caminhamos
juntos com os mesmos passos incertos.
É
a era do “tudo junto e misturado” e ao mesmo tempo a era do nada. Hoje é
possível agir com vulgaridade numa festa e publicar fotos sensuais no Facebook
com frases como “O Senhor é minha fortaleza” ou “Muita fé e Deus no coração”, bem
como assistimos cantores sertanejos/funkeiros que depreciam a mulher, estimulam
o alcoolismo, a promiscuidade e agradecem a Deus no intervalo das músicas.
“Pode isso Arnaldo?” Particularmente, considero um tremendo desrespeito, um
sacrilégio com a essência da fé. Nada precisa fazer sentido. Hoje em dia você
só precisa parecer ser do bem.
A
educação nacional é um fiasco, as livrarias fecham ou passam a vender apenas
futilidades, os cinemas não passam mais filmes de arte, as rádios, por
audiência, só tocam o que há de pior e a televisão é grande máquina destruidora
de mentes e sonhos. Algumas religiões radicais e absurdas se cercam de
ignorantes e ganham poder, as pessoas estão cada vez mais frias, consumistas, a
natureza clama por socorro e a política nacional é uma piada. O cerco está se
fechando, o cenário apocalíptico está desenhado e não invente de questionar o
sistema ou correrá um sério risco de ser queimado na fogueira.
Morremos
de rir com o gordo rico que emagrece, com o silicone bizarro na bunda da passista,
com os barracos dos famosos, com a queda do cantor pseudoartista, com a pegadinha
na TV que humilha o excluído senhor da periferia, com a letra esdrúxula do novo
funk... Morremos de rir. Desmanchamos culturas, não criamos valores positivos,
não investimos no desenvolvimento de nossa civilização, perdemos a capacidade
de nos emocionarmos com a arte e de valorizar pessoas que são grandes por suas
atitudes.
Sejamos
técnicos: nossa prioridade precisa ser a educação e o senso de coletividade ou
nada vai mudar.
Sejamos
humanos: sem amor, sem sonho e sem poesia a vida não vale a pena.
*¹
Matrix – Filme dirigido pelos irmãos Wachowski. Aborda um futuro fictício onde
as pessoas são escravizadas sem perceberem, pois suas consciências são mantidas
numa realidade artificial.
*²
Frase citada no filme Matrix, inspirada no livro Alice no País das Maravilhas.
Remete a mergulhar no desconhecido.
*³
Simulacros e Simulações – teoria do filósofo Jean Baudrillard que afirma que
não vivemos a realidade e sim uma simulação dela sem percebermos, pois estamos
alienados pelo sistema que nos cerca.
Muito boa reflexão, Marcelo. De uma sensibilidade ímpar e uma sinceridade inquietante.
ResponderExcluir