quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Gárgulas no telhado



Menino de rua, menino de ouro.
De sorriso fácil, dotado de inteligência sagaz e acolhedora que conquistava a todos com cantorias, histórias, pequenos favores e parceria por caminhadas pelas ruas do vilarejo. Cabelos negros, caídos sobre os encantadores olhos azuis, pele alva, suja das ruas, mas que não maculava o seu encanto, o seu doce sorriso... Mas naquele dia seus olhos não projetavam luz e de sua boca escorria sangue morno após ser atravessado no abdômen pela amolada espada do soldado real. Quem mandou correr para não apanhar mais uma vez? Quem mandou não obedecer? Menino de rua, menino de ouro, você foi à gota de água que faltava para a insurgência popular. Muito trabalho e pouca comida. Muito sofrimento e pouco respeito. Uma população esmagada por impostos e maus tratos de um rei apaixonado pelo poder, inconsciente de suas ações e distante de seu povo. Todos já ouvimos histórias como esta, acontecem em qualquer tempo, em qualquer lugar. Mas desta vez a população reagiu. Os guardas que mataram o menino foram os primeiros a serem linchados. Com a fúria de mil temporais a população partiu escudos rumo ao castelo, clamando por justiça, marchando com sede de sangue.
Embora ninguém mais lembre, foi neste dia que tudo começou.
Os camponeses gritavam e enfrentavam os soldados próximos aos portões do castelo, ameaçando perigosamente a paz real. Foi quando a janela da torre mais alta abriu e fez-se o silêncio. Todos pararam de brigar porque sabiam que aquele era o aposento do velho feiticeiro. Haviam lendas sobre infortúnios que sofriam os seus desafetos. Mas a janela ficou lá, escancarada, com o escuro de seu interior contrastando com o céu azul.
Um horrendo e desconhecido grito arrepiou a todos. Mais e mais gritos vieram em seqüência. Criaturas aladas começaram a voar pela janela, eram gárgulas, a circular a torre e a explorar os ares do reino com seus altos e estranhos sons. Não houve homem ou mulher que não temeu por suas vísceras, por seu fim.
O povo amedrontado fugiu.
A rebelião se dissipou. 
Os soldados também fugiram. 
Ninguém sabia o que estava por vir. 
Mas as gárgulas não atacaram ninguém, elas ficaram apenas voando por um tempo e depois se dirigiram ao vilarejo e ao campo. Pousaram sobre os telhados de todas as casas. Uma gárgula por casa.
Com sua pele cinzenta e pegajosa, cheiro ruim de coisas azedas e velhas, e aparência repugnante, mesmo sem atacar, causavam um sinistro mal estar entre as famílias. Era a visão aterradora do desconhecido, estavam sob controle e podiam ser devorados a qualquer momento.
Cada homem entrou em sua casa e permaneceu em silêncio com sua família. Não era hora de orgulho, era preciso sobreviver, era preciso andar na linha com a cabeça baixa e tentar compreender a o que estava acontecendo.
Alguns diziam que o feiticeiro via o que as gárgulas viam, mas não se sabe se isto é verdade. E, também, neste momento, não importa mais.
As gárgulas saiam dos telhados apenas a noite, por rápidos momentos, para caçar seu alimento e voltavam aos seus lugares, dos topos das casas. Às vezes comiam uma cabra, um porco, mas na maioria das vezes caçavam lebres e animais dos bosques ao redor. Eram exímios caçadores. Saiam, comiam e voltavam.
Com o tempo as pessoas foram se acostumando com suas novas bestas de estimação. Alguns ficaram com raiva e até tentaram uma reação, mas não adiantava. As gárgulas eram fortes, pareciam indestrutíveis e não esboçavam reação alguma quando atacadas com pedras ou paus. Outros tentaram fugir, ir embora, e estes tiveram pior fim. Naquela noite as gárgulas não comeram carne de animais.
As criaturas vieram para ficar, nada podia ser feito. Maldito feiticeiro! As famílias acostumaram-se inclusive com o cheiro dos detritos das gárgulas que iam se acumulando em seus telhados. O melhor era ficar quieto, trabalhar, fazer o possível para alimentar sua família, pagar os tributos e passar despercebido. Salve o rei!
Aos poucos as gárgulas foram adotando novos comportamentos, começaram, digamos, a ficar mais excêntricas, idiotas... Todos detestaram aquilo, era degradante para qualquer ser humano. Possuir criaturas debochadas tripudiando sobre suas cabeças, ignorando as suas dores. As Gárgulas granavam, riam, peidavam e começaram a cantarolar diversas melodias simples, repetitivas e bizarras. Era tão estúpido, era vergonhosamente humilhante.
Ninguém se lembra como as coisas mudaram, apenas que depois de poucos anos tudo ficou diferente. O povo acha que melhorou, mas tudo piorou. As gárgulas começaram a fazer parte da vida das pessoas e todos foram esquecendo o que elas representavam e de onde elas vieram. As famílias começaram a apreciar as graças das criaturas, as suas músicas e a alimentar seus gárgulas que não precisavam mais sair a noite para caçar. O comportamento foi mudando, com todos ficando mais leves e alegres. Ficava-se mais dentro de casa, escutando as gárgulas. Era o prazer das famílias. Você trabalhava e voltava correndo para o seu gárgula “amigo”.
As pessoas já não comiam juntas à mesa, não conversavam mais. Cada um servia o seu prato e sentava no seu canto preferido da casa. Ficavam escutando e repetindo as decadentes canções e flatulências.
Viciados.
Dependentes.
Apáticos.
Nunca mais ninguém perturbou o rei, interferiu nos seus conselhos, deixou de pagar impostos ou ousou questionar os mandos e desmandos do velho feiticeiro.
Chegou há um ponto em que ninguém se lembrava quando a primeira gárgula pousou no primeiro telhado, nem do primeiro grito que irrompeu da janela do castelo. Aliás, as pessoas nem lembravam que as gárgulas pertenciam ao feiticeiro. Pois agora as gárgulas eram suas. 
A história e as identidades foram sepultadas pelo riso atoa. 
Mas para que lembrar de um passado triste se hoje a felicidade impera?
Muitos verões se passaram... E a história apenas mudou por interferência da mãe natureza.
Houve uma grande seca e depois um inverno particularmente rigorosos. O pior de todos. Uma enchente acabou com a plantação, os animais morreram, muita neve caiu. Foram pegos desprevenidos. Os estoques de grãos do rei haviam sido vendidos para que o monarca pudesse aumentar uma ala de seu castelo e que ninguém ousasse tocar no seu ouro. A comida mais simples tornou-se mercadoria de luxo...
Aos poucos o cantos das gárgulas foi mudando, de bobas melodias, começaram a gritar desesperadamente, não queriam mais caçar e muito pouco havia para caçar. Queriam ser servidas por seus humanos, queriam comida e não havia.
Fugir era impossível.
Os primeiros a serem devorados foram os homens mais fortes e os que tentavam fugir. Depois, lentamente, os demais, os velhos e as mulheres... Aos poucos as casas foram ficando vazias.
O rei e sua família estavam muito longe. Passando uma temporada em sua estação de férias, longe do frio. E o feiticeiro, isolado na imponência de sua torre, mesmo com o grande frio que fazia, depois que o sol descansava e a lua surgia, escancarava a sua janela e esperava. O buraco de sua morada na torre de pedra era como uma mancha negra contrastando com o céu estrelado.
O feiticeiro recebia uma criança por noite das suas gárgulas.
Agora, os filhos alimentavam o pai.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Grão de areia no sapato



Você só não grita porque não sabe o que te incomoda
Mas sente que algo não está bem
Não está certo
Pode haver algo podre no subúrbio
Você não vê
Você não sabe
Mas sente uma leve oscilação na matrix

Carpintaria



Uma flor no meio do oceano
Efeito colateral do urso não polar
Com amor e com patadas
Nessa panelada de devaneios
Gritos presos, textos livres
Arde a pimenta do bosque lunar
Nesta carpintaria de afetos e desafetos
Dos esbanjadores de sonhos
E dos larápios albinos que dançam ao crepúsculo
E tu? Aonde tu vais?
Não esqueças o lampião
Porque nada vai acontecer amanhã
E tu. Pobre de tu!
Serás devorado antes de tentar decifrar o que leu até aqui
Pode ser a esfinge ou o incrível monstro verde
Que mora embaixo da terra e come nuvens

Flor de sol



Como pode...
Em meio a tanto pó, tanto calor, tanta secura
Brotam as mais belas flores das árvores do Tocantins
Deve ser um alento da natureza com ternura
Para marejar nossos olhos de água
E encharcar a sedenta alma com “belezura”.